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Alagoas Território Livre

Três notas sobre a luta política no Brasil

Por Jones Manuel, no blog da Boitempo:

Na história das organizações políticas da classe trabalhadora, em momentos de transição geracional e derrota estratégica, é comum uma “crise de criatividade”. Os dirigentes envelhecidos e desatualizados de novos métodos e táticas tendem a uma eterna repetição de formas de fazer política já consagradas – as quais, em outros momentos da história, deram resultados positivos, mas agora tendem a ser expressão de anacronismo e paralisia.


As esquerdas brasileiras passam por esse momento. A geração do fim da ditadura militar, que teve papel central na criação da Nova República está (em sua maioria) envelhecida, perdida, sem norte político e tático, e não consegue responder às mudanças rápidas da política brasileira e da dinâmica geopolítica. Uma das expressões disso é a permanência de três ilusões centrais que refletem uma tentativa – consciente ou não – de repetir o cenário dos anos 1980 e 1990.


Primeiro, existe um grito onipresente, desesperado, pela formação de uma frente ampla para enfrentar a extrema direita. O conceito clássico de frente ampla diz respeito a uma união de setores da classe trabalhadora, camadas médias e burguesia em momentos de ameaça fascista, de extrema direita ou de invasões imperialistas (tomando a forma de frente nacional, um dos tipos da frente ampla). Ela geralmente opera numa perspectiva defensiva, evitando a piora das condições de luta e buscando acumular forças para uma futura ofensiva.


Como podemos ver, é pressuposto para a existência da frente ampla a disposição de setores da burguesia e suas expressões políticas (partidos, entidades de representação empresarial etc.) para formar tal unidade. Ao final de 1970, por uma série de motivos, setores da classe dominante brasileira, notadamente a burguesia paulista, descolaram-se do regime empresarial-militar e passaram a defender a abertura “democrática”. Combinado a isso, os Estados Unidos – com o extermínio das vanguardas revolucionárias no continente – apoiaram a volta às democracias burguesas. Frentes como as Diretas Já foram expressão não da vontade ou da genialidade de líderes de esquerda, como Brizola, Lula e Mário Covas, mas de condições objetivas de classe e do momento histórico.


Atualmente, nenhum setor da burguesia deseja uma frente ampla e a derrota do bolsonarismo. Esse vem conseguindo entregar um pacote de ataques à classe trabalhadora, à soberania nacional, a regulamentações ambientais e a empresas públicas que abre largas perspectivas de lucro para as classes dominantes. A frente ampla está formada e atua em prol do maior ataque já visto na história da República à classe trabalhadora. A busca a todo custo por uma frente ampla contra Bolsonaro, tentando repetir o cenário do fim da ditadura, não tem lastro na realidade e está fadada ao fracasso, colocando no colo das esquerdas a responsabilidade por construir essa “unidade” à custa da deserção de qualquer proposta e identidade política de esquerda.


Evidentemente, é possível construir uma frente eleitoral com a burguesia e os partidos da direita neoliberal não diretamente fascista. Seja em escala nacional ou regional, isso vem sendo tentado – como mostram os exemplos de Lula e Marcelo Freixo. O que precisa ser dito, contudo, é que Freixo desistiu de qualquer programa de esquerda e Lula atua como o verdadeiro candidato de “centro”, buscando uma “reconciliação nacional” que tem como pressuposto não enfrentar as contrarreformas aprovadas de 2015 até agora e cimentar uma nova anistia “ampla, geral e irrestrita” para os autores do genocídio em curso.


Nesse caso, nunca é demais lembrar que vitórias eleitorais não significam vitórias políticas. Uma vitória eleitoral de Marcelo Freixo no Rio de Janeiro, levando a tira colo Rodrigo Maia, Eduardo Paes, Raul Jungmann e parceiros, pode significar, no máximo, uma “pausa” ou redução de ritmo no avanço da barbárie, mas não uma vitória da classe trabalhadora e uma “reconstrução” das condições de vida, trabalho e sociabilidade.


O segundo erro é imaginar que o impeachment de Bolsonaro seria igual ao de Collor e de Dilma, considerando apenas a popularidade e a base no Congresso e ignorando o fator militar. O bolsonarismo é, antes de tudo, o projeto militar, burguês e antinacional que encontrou no deputado miliciano do Rio de Janeiro a sua figura carismática. Temos o governo mais militarizado da história brasileira, com números que variam – a depender da fonte – entre 6 mil ou 7 mil militares no governo. O bolsonarismo, em cada crise ou abalo político, militariza mais o governo: foi assim com o Ministério da Saúde, Casa Civil, Petrobras etc.


As esquerdas brasileiras, mesmo os setores socialistas e comunistas, abraçaram Bobbio e esqueceram Lênin: ignoram o poder das armas, a dimensão violenta de toda política, e se veem despreparadas, na teoria, na ação política e na organização, para lidar com fuzis e coturnos. Com nobres e raras exceções, como a brilhante análise Carta no coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil (Baioneta, 2020), temos uma fuga do problema e a enésima tentativa de bajular os militares, poupando-os de críticas, ou então – o que é pior – buscando esse ou aquele “general democrático”.


O cúmulo do ridículo foi visto recentemente. Memes e piadas sobre os “tanques velhos” desfilando numa ameaça armada. É preciso lembrar três coisas fundamentais. Entre 1964 e 1985, nos 21 anos de ditadura empresarial-militar, as forças armadas brasileiras não estavam na vanguarda tecnológica do mundo e não poderiam ser consideradas as mais avançadas. Isso não impediu ou dificultou milhares de mortes, torturas, prisões e ações repressivas. Também não impediu uma vitória relativamente fácil sobre os grupos de luta armada resistentes à ditadura.


A segunda coisa, e mais óbvia, é que não importa se o tanque de guerra tem um padrão tecnológico de 40 anos atrás. Se um lado tem um tanque “velho” e o outro não tem nada, adivinha quem vai morrer? Aliás, recomendo para a militância brasileira que só achou graça no desfile dos tanques perguntar para o povo trabalhador do Rio de Janeiro – ou do Haiti! – se as “armas velhas” das Forças Armadas brasileiras matam ou não!


Em terceiro lugar, o fato de existir um desfile militar como ameaça ao Congresso já é um fato político. É um avanço simbólico e político do Partido Fardado, introduzindo mais um elemento da dinâmica do quartel na política burguesa. Como me disse certa vez Pedro Marin, em conversa pessoal, assistimos à “quartelização” da política. Se a política burguesa assume cada vez mais a lógica do quartel, por qual motivo, caso Bolsonaro perca em 2022, os militares atuariam de acordo com a “lógica” ideal republicana (que nunca foi realidade no Brasil!) e simplesmente voltariam à caserna?


Por fim, vivendo um ciclo eterno de autoilusão, os setores majoritários da esquerda brasileira apostam tudo em 2022, como se um novo governo fosse capaz de restaurar tudo que foi quebrado, voltar à normalidade (e partindo do pressuposto que a eleição vai transcorrer dentro da “normalidade”). Como disse Marx, sim, a história se repete, mas primeiro como tragédia e depois como farsa.


A ofensiva burguesa com o “teto de gastos”, a contrarreforma trabalhista e previdenciária, a destruição do complexo do petróleo e gás e a privatização de subsidiárias da Petrobras e BR Distribuidora, a “autonomia” do Banco Central e o novo pacote de ataques – como a contrarreforma administrativa – criaram uma amarração institucional que torna impossível governos de pacto de classe em que “todos ganham”, como os governos de Lula e, até certo ponto, de Dilma Rousseff. Alguém tem que perder!


A ideia de que uma nova eleição, com a derrota de Bolsonaro, vai recuperar o Eldorado da democracia – que nunca existiu para as maiorias – ignora a geopolítica, o poder militar, as contrarreformas neoliberais do Estado, o acirramento da pressão militar-imperialista dos Estados Unidos na América Latina e a ofensiva reacionária da burguesia interna. Ilusão perigosa, que condena nosso povo trabalhador a uma longa noite de derrotas. A classe dominante como um todo não deseja conciliação, padrões mínimos de democracia política e direitos econômicos e sociais, e não será um “gestor experiente” – Lula, Ciro Gomes, Flávio Dino ou qualquer outro – que conseguirá mudar isso. Não é questão de diálogo, mas de força, de luta – de luta de classes. Eles estão prontos para a guerra (e os fuzis já estão apontados). E nós?

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