Por José Luís Fiori, no site A terra é redonda:
O projeto cosmopolita, pacifista e humanitário da década de 1990 foi atropelado pelo poder americano
“Através da história, duas coisas foram ficando mais claras: em primeiro lugar, as guerras aumentam os laços de integração e dependência entre os grandes poderes territoriais deste sistema que nasceu na Europa a partir do séculos XIII e XIV; em segundo lugar, os poderes expansivos no “jogo das guerras” não podem destruir seus concorrentes/adversários, ou então são obrigados a recriá-los…E este talvez seja o maior segredo deste sistema: o próprio “poder expansivo” é quem cria ou inventa – em última instancia – os seus competidores e adversários, indispensáveis para a sua própria acumulação de poder”. (José Luís Fiori. “Formação, expansão e limites do poder global”, em O poder americano, Ed. Vozes).
É muito comum falar da aceleração do tempo histórico, apesar de que ninguém saiba exatamente o que isto significa, ou por que isto acontece. Todos reconhecem, no entanto, que são momentos em que fatos e decisões importantes se concentram e se precipitam, alterando significativamente o rumo da história. E hoje existe um grande consenso de que aconteceu algo desse tipo na virada dos anos 1990, provocando uma mudança radical no panorama geopolítico mundial na última década do século XX.
Tudo começou de forma surpreendente, na madrugada de 9 para 10 de novembro de 1989, quando foram abertos os portões e derrubado o muro que dividia a cidade de Berlim, separando o “Ocidente liberal” do “Leste comunista”. O mais importante, entretanto, ocorreu logo depois, com o processo em cadeia de mudança dos regimes socialistas da Europa Central e Oriental, que levou à dissolução do Pacto de Varsóvia e à reunificação da Alemanha, no dia 3 de novembro de 1990, culminando com a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria, em 1991.
Naquele momento, muitos comemoraram a vitória definitiva (que depois não se confirmou) da “liberal-democracia” e da “economia de mercado” contra seus grandes adversários e concorrentes do século XX: o “nacionalismo”, o “fascismo” e, finalmente, o “comunismo”. No entanto, o que de fato se concretizou naquela virada da História foi um velho sonho ou projeto quase utópico dos filósofos e juristas dos séculos XVIII e XIX, e dos teóricos internacionais do século XX: o
aparecimento de um poder político global, quase monopólico, que fosse capaz de impor e tutelar uma ordem mundial pacífica e orientada pelos valores da “civilização ocidental”. Uma tese que pôde finalmente ser testada depois da vitória avassaladora dos Estados Unidos na Guerra do Golfo, em 1991.
Trinta anos depois, entretanto, o panorama mundial mudou radicalmente. Em primeiro lugar, os Estados e as “grandes potências”, com suas fronteiras e interesses nacionais, voltaram ao epicentro do sistema mundial, e a velha “geopolítica das nações” voltou a funcionar como bússola do sistema interestatal; o “protecionismo econômico” voltou a ser praticado pelas grandes potências; e os grandes “objetivos humanitários” dos anos 1990, e o próprio ideal da globalização econômica, foram relegados a um segundo plano da agenda internacional. Mais do que isto, o fantasma do “nacionalismo de direita” e do “fascismo” voltou a assombrar o mundo, e o que é mais surpreendente, penetrou a sociedade e o sistema político norte-americano, culminando com a vitória da extrema-direita nas eleições presidenciais americanas de 2017.
Nesses trinta anos, o mundo assistiu à vertiginosa ascensão econômica da China, à reconstrução do poder militar da Rússia e ao declínio do poder global da União Europeia (UE). Mas o mais surpreendente talvez tenha sido a forma como os próprios Estados Unidos passaram a desconhecer, atacar ou destruir as instituições globais responsáveis pela gestão da ordem liberal internacional instaurada nos anos 90, sob sua própria tutela, desde o momento em que declararam guerra contra o Afeganistão, em 2001, e contra o Iraque, em 2003, à margem – ou explicitamente contra – da posição do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Por último, e talvez o mais intrigante, é que a potência unipolar desse novo sistema, que seria teoricamente a responsável pela tutela da paz mundial, esteve em guerra durante quase todas as três décadas posteriores ao fim da Guerra Fria. Começando imediatamente pela Guerra do Golfo, em 1991, quando as Forças Armadas americanas apresentaram ao mundo suas novas tecnologias bélicas e sua “nova forma de fazer guerra”, com o uso intensivo de armamentos operados à distância, o que lhes permitiu uma vitória imediata e arrasadora, com um mínimo de perdas e um máximo de destruição de seus adversários. Foram 42 dias de ataques aéreos contínuos, seguidos por uma invasão terrestre rápida e contundente, com cerca de 4 mil baixas americanas e cerca de 650 mil mortos iraquianos. Uma demonstração de força que deixou claro ao mundo a diferença de forças que havia dentro do sistema internacional depois do fim da União Soviética.
Depois disso, os Estados Unidos fizeram 48 intervenções militares na década de 1990 e se envolveram em várias guerras “sem fim”, de forma contínua, durante as duas primeiras décadas do século XXI. Nesse período, os norte-americanos fizeram 24 intervenções militares ao redor do mundo e realizaram 100 mil bombardeios aéreos, e só no ano de 2016, ainda durante o governo de Barack Obama, lançaram 26.171 bombas sobre sete países. simultaneamente.[1] Encerrou-se assim, definitivamente, a expectativa dos séculos XVIII, XIX e XX, de que um “superestado” ou uma “potência hegemônica” conseguiria finalmente assegurar uma paz duradoura dentro do sistema interestatal criado pela Paz de Westfália de 1648. Ou seja, no período em que a humanidade teria estado mais próxima de uma “paz perpétua”, tutelada por uma única “potência global”, o que se assistiu foi uma sucessão quase contínua de guerras envolvendo a própria potência dominante (Fiori, 2008).
São números que não deixam dúvidas com relação ao fato de que o projeto cosmopolita, pacifista e humanitário da década de 1990 foi atropelado pelo próprio poder americano. Uma constatação extraordinariamente intrigante, em particular se tivermos em conta que não se tratou de um acidente de percurso, ou apenas de uma reação defensiva datada. Pelo contrário, tudo aponta para o desdobramento de uma tendência central que foi se desvelando através de uma sucessão de guerras, fossem elas defensivas, humanitárias, de combate ao terrorismo, ou simplesmente de preservação das posições de poder das grandes potências dentro do sistema internacional.
A análise dessas guerras que precederam e explicam em parte a atual Guerra da Ucrânia, somadas às guerras do século XX, permite-nos extrair algumas conclusões ou hipóteses que transcendem esta conjuntura, projetando-se sobre a história de longo prazo da guerra e da paz através da evolução das sociedades humanas. Em primeiro lugar, a grande maioria das guerras não tem como objetivo a obtenção da paz ou da justiça, nem leva necessariamente à paz. Elas buscam sobretudo a vitória e submissão ou “conversão” dos adversários, e a expansão do poder dos vitoriosos.
A “paz” não é sinônimo de “ordem”, e a existência de uma “ordem internacional” não assegura a paz. Basta ver o que aconteceu nos últimos 30 anos, com a “ordem liberal-cosmopolita” que foi tutelada pelos Estados Unidos depois do fim da Guerra Fria, e que se transformou num dos períodos mais violentos da história norte-americana. Como já havia acontecido, também, com a “ordem internacional” que nasceu depois da Paz de Westfália, período em que a Grã-Bretanha, sozinha, iniciou uma nova guerra a cada três anos, entre 1652 e 1919, mesma periodicidade que teriam as guerras norte-americanas, entre 1783 e 1945 (Holmes, 2001).
Dentro do sistema interestatal, a “potência dominante”, mesmo depois de conquistar a condição de um “superestado”, segue se expandindo e fazendo guerras, e necessita fazê-lo para poder preservar sua posição monopólica já adquirida. O envolvimento dos EUA, por isso mesmo, a “potência dominante”, não tem compromisso obrigatório com o status quo que eles tutelam e ajudaram a criar. E, muitas vezes, eles são obrigados a modificar ou destruir esse status quo, uma vez que suas regras e instituições comecem a obstruir o caminho de expansão do seu poder (Fiori, 2008).
A paz é quase sempre um período de “trégua”[2] que dura o tempo imposto pela “compulsão expansiva” dos ganhadores, e pela necessidade de “revanche” dos derrotados. Esse tempo pode ser mais ou menos longo, mas não interrompe o processo de preparação de novas guerras, seja da parte dos vitoriosos,[3] seja da parte dos derrotados.[4] Por isso se pode dizer, metaforicamente, que toda paz está sempre “grávida” de uma nova guerra.
Em todo tempo e lugar, a guerra aparece associada de forma indisfarçável com a existência de hierarquias e desigualdades, ou mais exatamente, com a existência do “poder” e da “luta pelo poder”.
Se essas hipóteses não forem refutadas, poderíamos concluir que o projeto kantiano da “paz perpétua” não é apenas uma grande utopia; é de fato um “círculo quadrado”, ou seja, uma impossibilidade absoluta. Apesar disso, a “paz” se mantém como um desejo de todos os homens, e aparece no plano da sua consciência individual e social, como uma obrigação moral, um imperativo político e uma utopia ética quase universal. Nesse plano, a guerra e a paz devem ser vistas e analisadas como dimensões inseparáveis de um mesmo processo contraditório, perene e agônico de anseio e busca dos homens por uma transcendência moral muito difícil de ser alcançada.[5]
*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).
Referências
ABBÉ DE SAINT PIERRE. Projeto para tornar perpétua a paz na Europa. Brasília: Editora UnB, 2003.
BOBBIO, N. O problema da guerra e das vias da paz. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
FIORI, J. L. “O sistema interestatal capitalista na primeira década do século XXI”. In: FIORI, J. L. et al. O mito do colapso do poder americano. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Victor Civita, 1983 (Coleção Pensadores).
HOLMES, R. (Edit) The Oxford companion to military history, Oxford University Press, 2001
Notas
[1] Segundo dados apresentados por Micah Zenko, especialista em política externa norte-americana, publicados no site oficial do Council of Foreign Relations (www.cfr.org).
[2] “[…] a paz é apenas uma longa trégua, obtida por meio de um estado de crescente, persistente e progressiva tensão” (Bobbio, 2002, p. 73).
[3] “Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz” (Hobbes, 1983, p. 76).
[4] “O desejo de se ressarcir de um prejuízo que se crê haver sofrido, de vingar-se mediante represálias, de tomar ou retomar o que se considera sua propriedade, a inveja do poder, ou da reputação, o desejo de mortificar e rebaixar um vizinho de quem se pensa haver causa para detestar: eis aí tantas fontes de querelas que nascem nos corações dos homens e que somente podem produzir incessantes embates, seja com razão e com pretexto, seja sem razão e sem pretexto” (Abbé de Saint Pierre, 2003, p. 18)
[x] Este artigo reúne excertos extraídos do prefácio do livro organizado por J. L. Fiori, Sobre a Paz, publicado pela Editora Vozes em 2021. Seu título original é “O paradoxo de Kant e a leveza da paz”
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