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Alagoas Território Livre

Sexo em tempos de coronavírus

Por Slavoj Žižek, no blog da Boitempo:

* ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.


O Health Service Executive (HSE) da Irlanda emitiu uma série de diretrizes a respeito da prática de sexo em tempos de coronavírus. As duas principais recomendações do órgão são as seguintes:


“Vale a pena considerar dar uma pausa nas interações físicas presenciais, especialmente se você geralmente se encontra com seus parceiros sexuais online ou ganha a vida fazendo sexo. Considere marcar encontros amorosos por videoconferência, praticar sexting* ou participar de salas de bate-papo virtual. Procure desinfetar os teclados dos computadores e as telas sensíveis ao toque que você compartilha com outras pessoas. […] A masturbação não disseminará o coronavírus, especialmente se você lavar as mãos (e quaisquer brinquedos sexuais) com água e sabão por ao menos vinte segundos, antes e depois.”1


Tratam-se de orientações razoáveis de senso comum para tempos de uma epidemia disseminada por meio de contatos corporais. Mas vale notar que essas recomendações simplesmente consumam o processo que já vinha ocorrendo com a progressiva digitalização das nossas vidas: as estatísticas mostram que os adolescentes de hoje gastam muito menos tempo explorando a sua sexualidade do que navegando pela internet.


Ainda que eles de fato pratiquem sexo, hoje não é muito mais fácil e mais instantaneamente gratificante realizá-lo em um espaço virtual (com pornografia explícita, por exemplo)? É por isso que a nova série televisiva estadunidense Euphoria (2019) – que, segundo a descrição da própria HBO, “acompanha um grupo de alunos de ensino médio e suas experiências com drogas, sexo, traumas de identidade, mídias sociais, amor e amizade” –, com sua representação da vida dissoluta dos jovens de ensino médio de hoje é quase o oposto da realidade atual. Ela está fora de sintonia com a juventude de hoje e, por esse motivo, se mostra estranhamente anacrônica – revelando ser mais um exercício de nostalgia de meia-idade a respeito de quão depravadas as gerações mais jovens já foram.


Mas devemos dar um passo além aqui e se perguntar: e se nunca houve nenhum sexo “real” desprovido de qualquer suplemento virtual ou fantasiado? A definição usual de masturbação é “fazer você mesmo ao imaginar parceiros”, mas e se o sexo verdadeiro for sempre – até certo ponto – masturbação com um parceiro real? O que quero dizer com isso? Em sua coluna no jornal The Guardian, Eva Wiseman cita um dos episódios narrados em “The Butterfly Effect”, uma série em podcast a respeito dos impactos da pornografia de internet:


“No set de um filme pornográfico, um ator perdeu sua ereção no meio de uma cena – para retomá-la, desviou seu olhar da mulher nua que se encontrava deitada diante dele, pegou seu celular e deu uma busca no site PornHub. O que me pareceu vagamente apocalíptico.”2


A colunista então conclui: “Há algo de podre no reino do sexo.” Concordo, mas acrescentaria a seguinte lição da psicanálise. Há algo constitutivamente podre no reino do sexo: a sexualidade humana é em si mesma pervertida, exposta a inversões sadomasoquistas e, especificamente, à mistura de realidade e fantasia. Mesmo quando estou a sós com meu parceiro ou minha parceira, minha interação com ele/ela é inextricavelmente interligada às minhas fantasias. Isto é, toda interação sexual é potencialmente estruturada como uma “masturbação com um parceiro real” – tudo se passa como se eu me valesse do corpo de meu parceiro como um adereço para realizar/encenar as minhas fantasias.


Não podemos reduzir essa lacuna entre a realidade corporal de um parceiro e o universo das fantasias a uma distorção inaugurada pelo patriarcado, pela dominação social ou pela exploração – a lacuna já se encontra lá desde o início. Por isso eu até entendo o ator que, para recuperar sua ereção, deu uma busca no site pornográfico PornHub: ele estava à procura de um apoio fantasmático para a sua performance. É por esse mesmo motivo que, como parte da relação sexual, um parceiro pede para o outro continuar falando, geralmente narrando alguma “sacanagem” – até mesmo quando você segura em suas mãos a “coisa em si” (o corpo nu do parceiro), essa presença precisa ser suplementada por uma construção fantasiosa verbal…


Isso funcionou para o ator porque ele evidentemente não se encontrava em uma relação amorosa pessoal com a atriz – para ele, o corpo de sua companheira de cena era mais um robô sexual vivo. Se estivesse apaixonado por sua parceira, o corpo dela teria importado para ele visto que cada gesto de tocá-la perturbaria o âmago da subjetividade dela. Quando fazemos amor com alguém que verdadeiramente amamos, tocar o corpo do parceiro é crucial. Devemos, portanto, virar do avesso o chavão de senso comum segundo o qual a luxúria sexual é apenas carnal ao passo que o amor seria espiritual: o amor sexual é mais corporal do que sexo sem amor.


Será, portanto, que a epidemia em curso irá limitar a sexualidade e promulgar o amor enquanto uma admiração distante do ser amado que permanece longe do alcance do toque? A pandemia definitivamente vai alavancar os jogos sexuais sem contato corporal. Com sorte, no entanto, emergirá disso tudo também uma nova apreciação da intimidade sexual, e aprenderemos mais uma vez a lição de Andrei Tarkóvski, para quem a terra, sua composição inerte, húmida, não se opõe à espiritualidade, sendo antes seu próprio meio. Na obra-prima do diretor russo, O espelho (1975), seu pai Arseny Tarkóvski recita os versos de um de seus poemas: “Uma alma sem corpo é pecadora, como um corpo sem roupa.” A masturbação diante de imagens de pornografia explícitas é pecaminosa, ao passo que o contato corporal constitui um caminho para a espiritualidade.

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