Por Alysson Mascaro, no site IREE:
Vive-se em sociedade; vive-se politicamente. Tal verdade bastante óbvia é formulada teoricamente desde os clássicos, como Aristóteles. No entanto, suas compreensões e a extração de suas consequências são largamente variáveis, conflituosas e disputadas no decorrer da história. Acima de tudo, porque a política é o âmbito da exploração e das opressões. Por causa disso, a posição relativa e em disputa dos agentes, classes e grupos é também muito de suas perspectivas sobre a sociedade.
Pensar a política a partir de bases científicas é alcançar a natureza da reprodução social e seus conflitos. A ciência sobre a política não é aquela que ignora a dominação: é exatamente a ciência sobre suas formas.
Ao situar uma ciência da política nas formas sociais, que estruturam a exploração e as dominações, quer-se dizer que não são apenas os atos individuais que perfazem a história político-social. Deve-se investigar como as pessoas se relacionam – a forma pela qual se relacionam – a fim de que se perceba que os atos são realizados mediante coerções sociais previamente consolidadas.
Quando alguém disputa eleições, assim o faz em face do Estado, sob regras eleitorais. Quando alguém, por se destacar na comunidade como bom chefe de família, granjeia o respeito alheio e ganha poder, assim o faz num espaço social já definido – o bairro, a comunidade, o município –, a partir de instituições sociais também já consolidadas – a família monogâmica, a religião, as noções de “bom”, “chefe”, o patriarcado etc.
Cada ação política isolada não inventa as relações sociais: realiza-se mediante formas sociais já estabelecidas. Aí opera, então, a coerção das formas. Os sujeitos já são constituídos e interpelados socialmente antes mesmo de optarem pelas possibilidades aí dadas. Nasce-se pobre, rico, homem, mulher, negro, branco, nacional, estrangeiro etc. Posições de classe, grupo, gênero e raça estruturam a vida social independentemente do modo pelo qual o sujeito se portará em face desse quadro.
Na moldura já dada, há variadas estratégias possíveis: enfrentamento, acomodação, incômodo, vingança, passividade, acordo, reformismo, revolução etc. Se a política se faz a partir de formas sociais estruturalmente dadas antes dos próprios indivíduos, peculiarmente, são os próprios indivíduos, em ação social, que consolidam, historicamente, as próprias formas sociais que dão molde a eles mesmos. Os sujeitos fazem a política socialmente, e a sociedade, politicamente, constitui os sujeitos.
Não se pode, cientificamente, pretender compreender um esquema geral de estruturação e funcionamento da política em todas as sociedades em todos os tempos. Há, na história, variadas formações sociais, desenvolvendo distintas explorações e dominações. Tais múltiplas formações sociais se fundam em diferentes modos de organizar econômica e produtivamente a vida: quem trabalha, com que recursos, de que modo, atendendo a que fins e em favor de quem.
São os modos de produção os grandes modelos organizadores da exploração social. Escravismo, feudalismo e capitalismo são modos de estruturar a produção, a exploração do trabalho e a extração e manutenção da apropriação das riquezas e dos benefícios em variadas sociedades.
Cada uma dessas formas de exploração impõe, à totalidade social, formas específicas de vínculos políticos. No escravismo e no feudalismo, aquele que domina economicamente é via de regra o mesmo que domina politicamente. No capitalismo, há uma separação entre os capitalistas e o poder do Estado.
Todas as formas sociais são históricas, como históricos são os modos de produzir. Cada espaço (Brasil, Argentina, China etc.) e cada tempo específico (capitalismo industrial, capitalismo pós-fordista etc.) nos quais as relações e as formas sociais se produzem e reproduzem é uma formação social, uma sociedade em específico.
Compreender a política especificamente hoje é buscar compreender o modo de produção e suas formas sociais e políticas necessárias, além das características particulares da formação social atual. Por todo o mundo, o modo de produção capitalista estrutura as relações sociais. Se assim o é, o mundo é dividido em classes, tendo uma maioria de seres humanos explorada economicamente por uma minoria de detentores dos meios de produção.
A política no capitalismo tem nos Estados a sua forma de manifestação mais decisiva – são os líderes estatais que governam, são os poderes militares que reprimem. E neste modo de produção, sempre, a força política é derivada da força econômica. O capital é a última ratio política de toda sociedade capitalista.
A fase atual do capitalismo mundial é aquela que se chama pós-fordista. O regime de acumulação e o modo de regulação do momento presente se manifestam em políticas neoliberais. Nesse quadro geral do capitalismo, o Brasil é uma formação social específica. Sociedade capitalista dependente e periférica, com um histórico anterior de um modo de produção que por séculos foi tanto escravista quanto colonial, as encruzilhadas políticas brasileiras se defrontam ao mesmo com a coerção das formas sociais gerais de qualquer sociedade capitalista quanto, também, com suas características sociais específicas.
Esta sociedade que, nos dias que correm, vê milhares de seres humanos morrerem todos os dias em decorrência de uma pandemia que grassa solta, que vê milhões trabalhando para sobreviver na miséria, e que vê a acumulação, a opulência, o mando, a violência e o golpismo de suas classes e grupos exploradores e dominantes, reclama conhecer a ciência sobre a política para transformar estruturalmente sua realidade.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Alysson Leandro Mascaro
Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).
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