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Pasolini: Duas figurações da angústia do burguês moderno

No blog da Boitempo:

[O jornal popular Vie Nuove, órgão do Partido Comunista Italiano e publicado entre 1946 e 1978, teve Pier Paolo Pasolini como colunista de 1960 a 1965. Em sua coluna, intitulada Dialoghi con Pasolini, ele respondia cartas de leitores dos mais diversos perfis, das mais diversas idades, de todas regiões da Itália, e sobre os mais diversos temas: cultura, política, história, religião, literatura, cinema. Recuperamos aqui a coluna do dia 18 de março de 1961, publicado no n. 11 do periódico. A seleção e tradução são de Felipe Catalani.]


Moravia e Antonioni

Caro Pasolini, sigo atentamente a sua coluna e partilho de sua posição. Gostaria de lhe perguntar, visto que tantas obras literárias e artísticas são geralmente marcadas pela assim chamada “solidão” do homem moderno ou, mais precisamente, pela condição anti-humana do homem na sociedade atual, sobre a justificação dessas obras, sua validade, sua importância e função. E as razões culturais dessa postura. Cordialmente,

Giovanni Stefani – via S. Egidio 3, Firenze O seu bilhete, caro Stefani, é um convite para escrever um livro. O senhor de fato fala de “obras literárias e artísticas” produzidas neste último período: e se eu devesse responder brutamente, e com a raiva analítica que me é característica, eu deveria escrever um capítulo inteiro de história da cultura. Mas quero tomar seu pedido como uma solicitação e tratar dos argumentos de atualidade: as últimas “obras literárias e artísticas” a que o senhor se refere são provavelmente os filmes de Antonioni e La noia [O tédio] de Moravia.

Tanto La notte quanto La noia exprimem, como o senhor diz, a “solidão” do homem moderno, ou “mais precisamente a condição anti-humana do homem na sociedade atual”. E no entanto entre as duas obras há uma diferença substantiva.

Entrementes, La notte é escrita pelo autor, Antonioni, diretamente: a Moreau é “ela” e Mastroianni é “ele”: apesar dessa objetividade narrativa, a obra é extremamente subjetiva e lírica. Os dois personagens “ela” e “ele” não são senão flatus vocis, encarregados de exprimir aquele vago, irracional e quase inexprimível estado de angústia que é típico do autor, e que nos personagens se torna quase um sentimento refletido ou registrado.

Em La noia ocorre o contrário: ela é escrita indiretamente pelo autor: Dino, o protagonista, é o próprio “eu” que narra: no entanto, apesar dessa subjetividade narrativa, a obra é extremamente objetiva, consciente. O personagem “eu” não é senão um expediente, usado para exprimir um estado de angústia bem claro, historicizado, racional no autor, e entregue de volta à sua vagueza, que é então concretude poética, no personagem. As duas obras exprimem a angústia do burguês moderno: mas por meio de duas metodologias poéticas, por assim dizer, bem diversas, as quais revelam justamente uma diferença substantiva de quadro ideológico.

Para Antonioni, o mundo no qual ocorrem fatos e sentimentos como aqueles de seu filme é um mundo fixo, um sistema imodificável, absoluto, com algo até mesmo de sacro. A angústia age sem se conhecer: como acontece em todos os mundos naturais: a abelha não sabe que é abelha, a rosa não sabe que é rosa, o selvagem não sabe que é selvagem.

O mundo da abelha, da rosa, do selvagem são mundos fora da história, eternos em si mesmos, sem perspectivas senão na profundidade sensível.

Assim, os personagens de Antonioni não sabem que são personagens angustiados, não se colocaram, senão através da pura sensibilidade, o problema da angústia: sofrem de um mal que não sabem o que é. Sofrem e basta. Ela passeia neuroticamente descascando as paredes, ele leva sua face mortificada pelas ruas e salões, sem princípio ou fim. De resto, Antonioni não nos faz entender, ou supor, ou intuir em algum modo de ser diverso daquele de seus personagens: como seus personagens se limitam a sofrer a angústia sem saber o que ela é, assim Antonioni se limita a descrever a angústia sem saber o que ela é.

Moravia, ao contrário, o sabe muito bem: e o sabe também o seu personagem, Dino, que vive e opera em um nível cultural só um degrauzinho inferior àquele de Moravia. Por todo o romance, então, não se faz outra coisa senão discutir, analisar, definir a angústia (no romance chamada de “tédio”). Ela deriva de um complexo nascido no rapaz burguês rico: tal complexo comporta uma impossibilidade deprimente de relações normais com o mundo: a neurose, a angústia. O único modo de fugir é abandonar-se ao eros: mas também o eros se revela como nada mais que mecanismo e obsessão. Isso é aquilo que o personagem sabe. Moravia, naturalmente, sabe algo a mais. Ele sabe que a psicologia não é só psicologia: mas também sociologia. Sabe que aquele “complexo” do qual se diziam se é um fato estritamente pessoal, é também um fato social, decorrente de uma relação errada de classes sociais, isto é, de uma relação errada entre rico e pobre, entre intelectual e operário, entre refinado e inculto, entre o moralista e o modesto. Em outras palavras, Moravia conhece Marx, seu protagonista não. Eis porque o tanto de discussão que faz o personagem sobre o seu mal gira um pouco no vazio, e tem um valor puramente mimético e lírico. Falta à solução aquela palavra que Moravia conhece e seu protagonista não. La noia é um romance esplêndido, cuja última página deveria ser uma tragédia, e não uma suspensão. Moravia deveria ter a força de não dar nenhuma espécie de esperança a seu protagonista: porque o mal do protagonista é um mal incurável. Não há terceiras forças, nem ideais de sincretismo humanista capazes de liberá-lo.

Infelizmente, o público burguês médio, e também muitos intelectuais (embora rindo de certas tiradas desajeitadas do filme) se reconhecem mais em La notte que em La noia: à parte a hipocrisia, pela qual jamais desejariam admitir-se presos na loucura erótica que toma o protagonista moraviano, eles sentem que os personagens “pura-angústia” de La notte refletem melhor seu desejo substancial de não confrontar problemas racionais, a sua rejeição a toda forma de crítica, e a íntima complacência de viver em um mundo angustiante, sim, mas salvos, a seus olhos, pelo refinamento da angústia.


Pier Paolo Pasolini (1922-1975) nasceu em Bolonha. Cineasta, escritor, poeta e intelectual crítico, dirigiu Teorema, Saló e O evangelho segundo São Mateus, entre outros. Dele, leia também “O gol fatal” e “Detesto quem anda com uma pistola no bolso” no Blog da Boitempo.

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