A paisagem do Recife, capital pernambucana, sempre foi marcada por inúmeros palafitas — moradias construídas de maneira extremamente precária sobre os rios. Durante os governos do PT, por causa das políticas sociais, algumas pessoas conseguiram abandonar as palafitas e conseguiram uma moradia digna, especialmente no bairro de Brasília Teimosa, um dos primeiros do país a serem contemplados com uma série de reformas por meio do governo Lula. No entanto, após o golpe, o número de palafitas voltou a crescer rapidamente — há mais de 4 mil moradias precárias no Recife, dentre elas, as palafitas.
Com o avanço da pandemia de coronavírus em todo o mundo, o imperialismo decidiu recomendar aos governantes em todo o mundo que adotassem o isolamento social como medida de contenção da doença. Isso, obviamente, não se trata de um esforço sério para salvar vidas, mas apenas de uma medida desesperada para evitar uma explosão social em meio a milhões — ou talvez dezenas ou até mesmo centenas de milhões — óbitos que a pandemia poderia deixar se nenhuma medida fosse tomada. Essa medida, contudo, não facilita, de maneira alguma, que os moradores de palafitas se protejam.
Em primeiro lugar, aqueles que moram em palafitas são, naturalmente, a camada mais miserável da população — desempregada ou em trabalho informal. Assim, são pessoas que não terão qualquer condição de se sustentar sem sair de casa, pois dependem diretamente do seu próprio trabalho. Em segundo lugar, as casas não foram projetadas por um arquiteto europeu, nem muito menos construídas por uma empreiteira — foram construídas, em geral, pelos próprios moradores, com sobras de material e, por isso mesmo, são muito quentes — a sensação térmica pode chegar a 35 graus!
Entrevistada pelo jornal Folha de S. Paulo, Elane Maria da Silva, de 58 anos, asmática, hipertensa e moradora de uma palafita do bairro do Bode, na Zona Sul do Recife, declarou:
"O calor aqui é muito grande. Eu preciso respirar lá fora. Tenho que ir no tonel de água de instante em instante. Não aguento".
Além do calor, os moradores de palafitas são obrigados a conviver com a falta de saneamento básico. Apesar de o Governo do Estado e a Prefeitura garantirem que o caminho para combater a doença seja ficar em casa e cuidar da higiene, não há qualquer possibilidade de manter a higiene nas palafitas. A maioria sequer tem água encanada.
Recentemente, estudos mostraram que o coronavírus pode ficar nas fezes humanas por, pelo menos, uma semana. Nas condições em que se encontram os palafitas, bastaria um morador se infectar para gerar uma contaminação generalizada em toda a comunidade.
Diante dessa realidade — e da de todos os outros trabalhadores, castigados pela corja golpista que controla o país —, é preciso mobilizar toda a população para enfrentar o coronavírus de maneira efetiva. É preciso formar conselhos populares em todos os bairros e lutar pela derrubada imediata do governo Bolsonaro, que está destinando trilhões de reais para os banqueiros enquanto põe todo o restante da população sob seríssimo risco.
A situação de moradias precárias no Recife, bem como em todo o país, não vem de hoje e não será resolvida por meio de uma outra medida demagógica, mas sim por meio de um enfrentamento decidido da população contra a direita. Encerramos esse artigo com um trecho da obra "Morte e vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, que retrata a total falta de perspectiva dos moradores de palafitas:
FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS
Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, como goiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão tudo o que cheira a comida; depois, aprenderá com outras espécies de bichos: com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo. Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim, vestido negro de lama, voltar de pescar siris; e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão fazendo dos dedos iscas para pescar camarão. — Atenção peço, senhores, também para minha leitura: também venho dos Egitos, vou completar a figura. Outras coisas que estou vendo é necessário que eu diga: não ficará a pescar de jereré toda a vida. Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas; não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício, bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré que vemos aqui vestido de lama da cara ao pé. E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe.
****