“Triste va mi canto ahora, triste camina también mi pensamiento. Ya no quiero adornar mi cabello, ya no quiero cantar cuando el sol aparezca en la mañana.
Iré a la montaña a esconderme, para que nadie me mire, para que nadie me mire.”
Jaqueline Caniguán (1974-), poetisa Mapuche
Em um tempo muito antigo, depois da separação dos continentes, da fúria dos vulcões, das cordilheiras gigantes e dos montes, o sol aparecia como uma explosão de cores para nada. O dia e a noite se alternavam, luz e trevas, sem que as estrelas ou a inclemência do sol pudessem percorrer impulsos elétricos e nervos, sem que cem milhões de fotorreceptores pudessem transformar luz e cores, sem que nenhum córtex pudesse captar os impulsos e formar imagens.
Há mais ou menos quarenta mil anos, quando os pés que cruzaram o mundo chegaram pela primeira vez, é que a explosão de imagens inundou os olhos amendoados. Eles viram o céu, o mar, a cordilheira, o condor e o puma, o voo do pássaro e a cor do copihue, eles viram a noite e o dia, batalhas e impérios, grandeza e decadência, a terra mineral, a dureza da semente e a promessa do fruto.
Viram quando os conquistadores chegaram e lutaram contra os impérios por seu ouro, viram a sombra da cruz de madeira ofuscar os deuses, a tortura e a iniquidade, viram a morte e o sangue, os corpos despedaçados, viram como pode ser profundo o poço da maldade e do ódio. Mas viram também os que lutavam, os punhos erguidos que buscavam o abraço da cordilheira, viram quando as lágrimas se fizeram rios que guardavam a vida que foi e a vida que viria.
Viram mais de uma vez a noite derrotar o dia, a escuridão das catacumbas, as trevas e as estrelas que resistiam como gritos de luz em meio ao breu do firmamento, e a lua que morria para renascer em seu brilho de prata.
Viram gigantes que andavam sobre a terra. Por três séculos viram a luta em defesa de Mapuche Wallontu Mapu, viram com seus olhos a carnificina chamar-se de pacificação, viram Leftraru como criança sendo escravizado pela infâmia e o viram crescer como Lautaro que olhou seus dominadores para aprender como enfrentá-los.
Os olhos que se fechavam para dormir, os olhos que despertavam com o sol viram os mineiros saindo das entranhas da terra e marchando por seus direitos, viram mães carregando seus filhos, velhos e crianças do salitre erguerem seu punho forte e viram as tropas da morte cair sobre eles e o massacrarem em Santa Maria de Iquique.
Olhos que tanto viram anoitecer, também viram a esperança dos dias, viram auroras avermelhadas e suas bandeiras, libertárias, socialistas, comunistas. Viram a si mesmos no espelho claro de seus olhos limpos pelas lágrimas da noite.
E porque viam o passado puderam ver o futuro e ele era de bandeiras e cantos, de abraços e de encontros, de poetas e trabalhadores. Viram o presidente com seus óculos que lhes permitia ver o povo e suas esperanças, ver as crianças, as mulheres e os operários, os mineiros, o camponês e o índio, cada gota do sangue e das lágrimas feitas em rio, viu a noite e as estrelas que nunca deixaram de acreditar no amanhecer.
E mais uma vez a noite e suas botas, mais uma vez a morte e seus cortejos, mais uma vez a infâmia e a tortura, mais uma vez as trevas. Mais uma vez erguer a cruz e assassinar a Cristo, uma vez mais colocar o deus dinheiro no altar e a fome no prato do trabalhador, escondendo os olhos do mal atrás de óculos escuros e uniformes verdes.
Toda noite, por mais longa, encontra seu amanhecer. Mas nem todo dia nasce por inteiro.
As fogueiras aquecem a revolta das ruas iluminando a insensatez da noite. Por quanto tempo dormimos? Perguntam os que dormiram. Nenhum segundo, respondem os que militam na insônia, pois aprenderam a arte de sonhar despertos. Jovens, palhaços, meninas, cachorros da rua, senhoras e insanos, professores e alunos, aposentados sem renda e enfermos sem médicos, cantores e poetas, marcham desafiando a noite com o brilho dos olhos abertos.
Na vanguarda centenas de jovens sem seus olhos, avançam. No oco do olho arrancado poderia morar a noite, mas habita a luz e denuncia seus carrascos. Uma velha índia mapuche tira sons ritmados de seu kultrum e entoa uma oração.
Milhões de olhos, então, vêm desde o nascimento da cordilheira, do coração dos vulcões, das geleiras e dos rios, de todos os combatentes caídos, das minas e dos desertos, dos náufragos nos mares gelados, das alturas e das entranhas da noite, das cabeças decepadas dos guerreiros índios, dos calabouços e câmaras de tortura, dos porões e das avenidas, das fábricas e dos campos, dos muros sujos de sangue dos fuzilamentos, dos corpos violentados e estuprados, das gargantas caladas dos que cantavam, dos lábios mortos dos poetas. Milhares de olhos agora encaram seus carrascos desde o buraco vazio dos olhos arrancados.
Os jovens cegos enfrentam seus algozes e dizem: “eu posso vê-los, vocês não podem… vocês não têm olhos que voam”!
****