Logo no início do primeiro capítulo do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, consta um dos mais célebres conceitos sobre o comunismo: “Até hoje, a história de todas as sociedades é a história das lutas de classes”.
Depois do Manifesto, o mundo não seria o mesmo, ainda que outras obras, como O Capital, também da dupla de filósofos, tenham contribuído de forma contundente para as revoluções socialistas que ocorreram várias décadas depois, transformando, de forma irreversível, a relação entre os meios de produção e a burguesia com o proletariado.
No filme Coringa, de Todd Philips, com Joaquin Phoenix no papel título, talvez Arthur Fleck fosse mais um anônimo, um excluído da sociedade em meio à luta de classes, que aparece como pano de fundo de toda a obra. Como milhares de outros menos afortunados, o personagem tem uma precária condição social e uma conjuntura psiquiátrica que o colocam, diretamente, no lado menos favorecido da sociedade.
Phoenix conduz –de forma genial, diga-se de passagem– o derrotado palhaço que sonha ser comediante, em um dos mais enigmáticos, cultuados e psicologicamente complexos personagens da história do cinema. Afinal, pode ser uma das raras vezes em que dois atores são premiados com o Oscar pela interpretação do mesmo personagem (Heath Ledger levou o prêmio máximo da academia em 2009, interpretando o Coringa em The Dark Knight). O palhaço, certamente muito mais que seu arqui-inimigo Batman, extrapolou o mundo dos quadrinhos para permear, de vez, o mundo da sétima arte: o filme venceu o Leão de Ouro, prêmio máximo do Festival de Veneza.
O filme se ambienta na cidade fictícia de Gotham City, no início dos anos 1980. Na trama, os lixeiros estão em greve por viverem na miséria, e a população, sobretudo os “menos afortunados”, para usar um termo da própria película, se encontra em estado de revolta, não apenas contra o governo, mas contra a burguesia, num local com um visível abismo econômico e social.
Para entender a estética do filme, do que não pretendo tratar diretamente nesse texto, é extremamente aconselhável que o expectador tenha lido Alan Moore, o mago dos quadrinhos que criou a história canônica do personagem, no clássico A Piada Mortal, e visto os filmes dirigidos por Martin Scorsese, que têm o estilo de direção assumidamente tido como referência para O Coringa.
A direção de Todd Philips, sobretudo, nos remete imediatamente a Taxi Driver, de 1976, estrelado por Robert De Niro, que, com um papel menor em Coringa, mas com seu habitual brilhantismo, atua como alusão viva a Scorsese. Curioso é que o diretor norte-americano causou polêmica recentemente ao declarar que os filmes da Marvel “não são cinema” –o que nos faz concluir que Coringa, da arqui-rival DC, é cinema.
O principal antagonista do Homem-Morcego não é exatamente um comunista que pretende liderar uma sublevação popular. Aliás, talvez o protagonista seja a mais clara expressão do anarquismo. Mas, ao assassinar três milionários no sombrio metrô de Gotham, o palhaço passa a ser considerado, por parte da população, como um vigilante. Um vilão que se transforma em um anti-herói no decorrer do filme. A população, em estado de revolta, começa a ter como referência o palhaço sociopata em seus ideais revolucionários.
“Matem os ricos”, estampa a capa de um jornal no dia subsequente aos assassinatos. E logo a população toma as ruas, com os lemas de “somos todos palhaços” e “morte à burguesia”. A população, que admira o cruel ato do protagonista, não deixa de lembrar, novamente, Alan Moore em uma de suas mais célebres obras, V de vingança. O povo mascarado, dessa vez como palhaço, toma as ruas, saqueando lojas e enfrentando a polícia, com um ideal por trás de seus atos.
Impossível não lembrar também da recente história brasileira protagonizada pelos chamados “black blocs”. A população mais pobre, literalmente, pede a cabeça da burguesia, iniciando, talvez sem perceber, uma luta real de classes, com o proletariado à frente das ações. Atos de vandalismo e confrontos com a polícia nos trazem à memória as cenas que vimos nos jornais, em 2013, no Brasil.
Mas, em Gotham, o movimento segue até o final, sem ser capitaneado pela direita ou qualquer movimento político que não seja a luta contra a burguesia. Coringa passa a ser uma referência ainda maior para os palhaços mascarados que tomam as ruas, ao assassinar, ao vivo, um famoso apresentador de televisão que o havia convidado para ser uma bizarra atração de seu programa.
Claro que estamos tratando de uma obra de ficção, mas a luta de classes por trás da história central é clara e nítida. Como no Brasil tivemos os mascarados black blocs, Gotham tem uma legião de mascarados que, sem o maniqueísmo clássico entre o bem e o mal dos filmes baseados em quadrinhos, promove uma violenta revolução social. Naturalmente, o filme recebeu diversas críticas negativas pela ousadia do roteiro.
Em setembro, Phoenix abandonou uma entrevista ao jornal britânico The Telegraph após o repórter perguntar se o filme não acabaria “inspirando exatamente o tipo de pessoa de que a história trata, com resultados potencialmente trágicos”. O ator acabou retornando e respondendo que isso nunca havia lhe passado pela cabeça.
Uma semana após seu lançamento, Coringa se tornou sério candidato a ser o mais bem sucedido filme baseado em HQ da história. Em sua estreia, bateu recorde de bilheteria nos EUA, atingindo 93,5 milhões de dólares, segundo a revista Variety. A atuação de Phoenix, uma unanimidade entre os críticos, muda, para sempre, um dos mais complexos personagens do cinema. O roteiro é primoroso e transporta a luta de classes para as ruas de Gotham City. De Moore a Marx, história e ficção se misturam de forma genial no filme. Realmente imperdível
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